Seminário Pensamento freiriano: vidas encontros
O título deste artigo mantém profunda relação com o evento realizado no mês de maio, na reunião do Fórum EJA/RJ, que promove reuniões mensais, sempre às terceiras segundas-feiras de cada mês e que, neste caso, apresentou atividade ampliada ao prestar, especialmente, uma homenagem ao educador Paulo Freire. Em 2 de maio completou-se, fisicamente, uma década de ausência do educador. No entanto, o permanente pensamento freireano está imortalizado por meio de inúmeras referências à sua obra, o que o mantém vivo e presente no cenário político-pedagógico contemporâneo.
O evento foi marcado, sobretudo, pela possibilidade de congregar pessoas que mantiveram com Paulo Freire estreitas relações de estudos, pesquisas, debates, críticas e trabalhos. Reunidos em diversas mesas, compartilharam compreensões pelas experiências vivenciadas não somente sobre a obra, mas sobre o homem que constituiu o educador, brindando o público presente com novas ressignificações das práticas pedagógicas e desdobramentos inspirados no pensamento freireano.
Neste sentido, a riqueza do diálogo travado no evento deu-se, em grande medida, pela participação, na primeira mesa, de Ricardo Henriques, então Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), palestrando sobre A EJA no Plano de Desenvolvimento da Educação: o que diria Paulo Freire? Na mesa, Ricardo Henriques ressaltou “a importância de resgatar o inacabável otimismo e a esperança que Paulo Freire apresentava de que as situações da realidade brasileira pudessem se configurar de outra maneira”. Concluiu, dizendo que o grande desafio era:
[...] propor outro padrão de desenvolvimento que dê conta da sustentabilidade ecológica, da sustentabilidade política, da sustentabilidade cultural e da sustentabilidade social, como um todo. Esse momento se depara com [...] elementos chaves na agenda Paulo Freire: a educação como prática de liberdade, que não é simplesmente uma tese, em que ao ler o campo do direito tem de transformá-lo em arte do fazer, sabendo que o fazer se desfaz.
Na continuidade do evento, a segunda mesa da manhã contou com a participação de Sandra Maciel e Ana Maria Miguel, ambas consultoras pedagógicas do Salto para o Futuro, programa que incorpora a grade da TV Escola, canal educativo da Secretaria de Educação a Distância do Ministério da Educação, produzido pela TVE, aqui no Rio de Janeiro. Com o tema Imagens do educador – resgate da memória na TV Escola, Sandra Maciel apresentou entrevista gravada pela equipe do programa – talvez a última – com Paulo Freire em 1997, juntamente com o Prof. Moacir Gadotti, discutindo a questão da escola cidadã, uma série específica de EJA, abordando o projeto político-pedagógico da escola, mediada pelo Prof. Gaudêncio Frigotto. Segundo Sandra Maciel, “a proposta do Salto é a formação continuada e o aperfeiçoamento de docentes que trabalham em educação com alunos dos cursos de magistérios. Os temas são apresentados por três especialistas, que discutem a temática com questões relacionadas à educação”. Para Ana Miguel e Sandra Maciel foi muito difícil fazer a apresentação no Fórum, devido às muitas possíveis escolhas de imagens no grande acervo. Porém, destacam questões interessantes no conjunto do material selecionado:
Primeiro, a questão do conteúdo que está sendo discutido, que é a questão da escola cidadã. O segundo, os participantes [...] que especialmente nesta série tem como apresentador, também, um especialista [...]. A outra questão [...] uma marca do Programa Salto para o Futuro é a questão da interatividade com os professores cursistas do Salto [...] essa interatividade não se fazia só por meio de telefonemas, e-mail e cartas. Mas também, pela participação ao vivo de professores reunidos, em seus estados, fazendo perguntas, intervenções durante o debate.
Após o intervalo do almoço, bem no clima de descontração, a programação seguiu com uma atividade cultural que emocionou o público presente
. Esta emoção tratava-se de uma prévia à próxima mesa. Um coral — o Coral do Meio-Dia — se apresentou às 13h30min, mostrando a arte da musicalidade por meio de arranjo sem instrumentos musicais, contando apenas com a utilização de um teclado auxiliando a harmonia vocal. O repertório, escolhido especialmente para o evento continha, entre outros, Tom Jobim e Milton Nascimento com a música Coração de estudante. Sob a regência do maestro que coordena o grupo formado por professores, funcionários, alunos e membros da comunidade externa, produzem arte ao Meio-Dia, no coral que enriqueceu o Seminário.
Depois, um momento bastante rico no evento, talvez, o mais esperado: Trilhas de estudos: debate e crítica ao pensamento freireano, mesa redonda coordenada pela Profª. Drª. Bertha de Borja Reis do Valle que, de início, justificou a ausência do Prof. Timothy Ireland, Diretor da DEJA da SECAD/MEC, que integraria a mesa composta pelo Prof. Dr. Osmar Fávero, da UFF; pela Profª. Drª. Edna Castro de Oliveira, da UFES, representante nacional dos fóruns de EJA na Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA); além do Prof. Dr. Gustavo Fischman da Universidade do Arizona. No clima de descontração que caracteriza o Fórum EJA/RJ, a Profª. Bertha Valle ainda confidenciou aos presentes que: “o Prof. Osmar Fávero tem uma longa trajetória no campo da educação e com muitas histórias para nos contar, afinal fui aluna dele em 1971, quando éramos jovenzinhos...”
O debate da tarde teve início com o Prof. Osmar Fávero contando um pouco da história de como Paulo Freire produziu seu processo de alfabetização, resgatando a cultura popular no Nordeste, por meio das cartilhas, o conhecimento disponível sobre métodos de alfabetização à época e como Freire, com palavras geradoras e fichas de cultura revoluciona o pensamento sobre a alfabetização. A Profª. Edna retoma determinadas categorias freireanas e conta seu profícuo debate com o educador, quando fazia a dissertação de mestrado e a participação que Freire teve em sua defesa, incorporado à banca, dialogando e assumindo a interlocução com a pesquisadora que questionava aspectos do seu pensamento sobre processos de alfabetização. Por último, o Prof. Gustavo Fischman brindou o auditório com uma reflexão bastante significativa sobre aspectos trazidos pelos debatedores anteriores, enriquecida pela sua vivência em território americano como professor e pesquisador, podendo articular as críticas apresentadas com uma certa idealização por meio da qual Paulo Freire é sempre apresentado, especialmente fora do Brasil.
Novo intervalo, desta vez para recompor as forças e fazer um lanche, pois a programação prosseguia com mais uma atividade cultural. Agora, o Teatro do Oprimido, idealizado por Augusto Boal, apresentava a peça Nem sim nem não, precedendo a mesa que discutiu Cultura: sentidos na obra de Paulo Freire. O Teatro do Oprimido, uma forma diferenciada de teatro em que a platéia interage com os atores, apresentando novas situações para a trama estabelecida, possibilitou que o público vivenciasse na relação de uma família os conflitos de uma adolescente que deseja ir à festa, sem que haja acordo com mãe e pai, que tentam regular sua vida à sua maneira. Passando a contracenar no palco, alguém do público apresenta diferentes possibilidades para a trama, substituindo ou inserindo novas personagens, buscando novos caminhos/papéis/modos de pensar que dirimam os conflitos enfocados, vendo de novos ângulos a questão.
Na mesa que se seguiu, Márcio Leopoldo, coordenador de EJA do Instituto Paulo Freire, de São Paulo e Claudius Ceccon, Secretário Executivo do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) trouxeram as questões da cultura no pensamento freireano e fecharam a noite de um seminário tão fértil de idéias e pessoas.
Márcio Leopoldo iniciou tecendo comentários sobre a questão trabalhada constantemente no Instituto Paulo Freire, para animar a discussão da mesa: a formação do educador. No Instituto, afirmou, “objetiva-se a reinventar práticas pedagógicas aliadas ao conceito político – portanto reinventar o legado de Paulo Freire – fundamental na educação”. Neste sentido, disse, o espaço escolar seria, sobretudo, um espaço cultural, avançando no que Paulo Freire entendia por cultura:
A cultura para Paulo Freire não é, portanto, uma superestrutura determinada pela infra-estrutura econômica, como queriam alguns marxianos. Em diálogo com o pensamento marxista, creio que a cultura é um modo de existência política dos seres humanos que por serem inconclusos e incapazes de materializar as próprias ações, eram incapazes de transformar o mundo e mudar o rumo de suas próprias histórias. No pensamento freireano a cultura é o nosso repertório de experiências, um conjunto de possibilidades de valorar, de escolher, de agir, de ser e conviver e a história um constante vir a ser.
Claudius Ceccon, ao iniciar o diálogo, introduziu uma pequena história de como conheceu Paulo Freire, optando por narrá-la sob o ponto de vista histórico abordando a trajetória do próprio mestre. Segundo ele, Paulo Freire surgiu num momento, no Brasil, muito importante, em que o contexto sociopolítico era marcado pela participação popular buscando a conscientização e a politização. Destacou a concentração de pensadores deste momento e a figura de Anísio Teixeira, que preparou o terreno para Paulo Freire, favorecendo sua experiência com os Círculos de Cultura em Angicos, no Rio Grande do Norte, que acabou dando uma contribuição extraordinária ao processo pedagógico do país.
Contudo, o golpe de 1964 interrompeu a trajetória de Paulo Freire, que foi então preso – acusado de subversivo – e buscou exílio na Embaixada da Bolívia. Lá chegando, uma semana depois, um golpe também acontece. Refugiou-se no Chile, onde foi consultor da UNESCO no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária, por quatro anos. Em 1969, Paulo Freire foi convidado para trabalhar no Centro para Estudos de Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Harvard, nos EUA, durante um ano.
Em 1970, outra mudança, desta vez para trabalhar como consultor do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, na Suíça. Neste mesmo momento, Claudius Ceccon trabalhava em Genebra, em uma organização internacional e os amigos do Brasil escreveram uma carta dizendo “receba bem Paulo Freire, porque ele vai sofrer muito com o frio da Suíça, com o jeito de ser dos suíços, essa maneira diferenciada de tratamento, pois o Paulo é um ser muito amoroso”. Foi que se conheceram e, juntos, participaram de um grupo de estudos latino-americano, em que surge a idéia de construir um seminário internacional para discutir “conscientização” – palavra nova para alemães, franceses e ingleses, que forneceu bases para criação de uma instituição: o Instituto de Ação Cultural.
Claudius Ceccon ainda relatou que Paulo Freire desenvolveu, conjuntamente com este grupo de estudos, programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, além de contribuir em campanhas no Peru e na Nicarágua. Em 1979, sob a anistia política, voltou ao Brasil e um ano depois o retorno é definitivo, fazendo-se professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas.
Em 1986, Claudius funda o Centro de Criação de Imagem Popular, que viabilizaria a técnica de utilização do audiovisual como provocador de discussão, tendo como presidente de honra Paulo Freire. Paulo Freire ainda teria outras experiências significativas, dentre elas a participação como Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, do PT, entre 1989 e 1991, destacou o debatedor.
A mesa encerrou-se com Claudius Ceccon apresentando um documento em imagem contendo a última participação de Paulo Freire na UERJ, no Seminário Mídia, Comunicação e Democracia, evento realizado em 1996, menos de um ano antes de sua morte. Percebeu-se que a fala de Paulo Freire era impregnada de filosofia, tal como quando diz que “ler é compreender o mundo e aprender a escrever é adquirir instrumentos para mudar esse mundo”:
[...] mulheres e homens inventaram essa capacidade fantástica de inteligir o objeto. Mas também, então se deu essa coisa extraordinária, formalmente, é que o objeto inteligido pelo sujeito inteligente, automaticamente, virou um objeto comunicável. Não há inteligência que não gere inteligido, que por sua vez está à espera da comunicabilidade. A inteligibilidade do objeto gera a sua comunicabilidade. Mas a comunicabilidade do objeto não é ainda a sua comunicabilidade. [...] esta relação entre sujeito inteligente, objeto inteligível e torná-lo inteligido, gerando a capacidade de comunicabilidade dele, coloca a nós o exercício da comunicação.
Por: Demetrius Dias da Silva